Escolher o caminho é preciso A peça Vida que segue, de Erlon José Paschoal, apresenta-se como um retrato contundente e atualíssimo dos conflitos e das contradições que permeiam a vida em família na contemporaneidade. De forma habilidosa, o autor constrói um universo familiar de classe média em que nenhum laço afetivo consegue se desprender por completo das tensões sociais, políticas e econômicas em curso na sociedade. Ao mergulharmos nesse texto, percebemos a engenhosidade de uma carpintaria teatral que amarra com destreza cada diálogo, cada cena, sustentada por um embate contínuo entre personagens que, aparentemente, poderiam estar em qualquer lar brasileiro.
A urdidura dramática aposta em diálogos fluidos, com expressões cotidianas críveis, que ao mesmo tempo nos prendem e convidam à reflexão. Através das onze cenas, cada fala revela uma faceta do nosso tempo: machismo, preconceito, homofobia, aporofobia, hipocrisia religiosa, consumismo e desrespeito, que fazem emergir uma crítica social potente e necessária. Embora muitas das discussões pareçam emergir de questões “corriqueiras” – como reclamações de gastos, divergências de opinião política ou disputas sobre sexo e afeto – logo se percebe que, no fundo, os personagens encenam um 6 microcosmo da sociedade. É ali, naquele ambiente doméstico, que se configuram as estruturas de poder e de submissão, a exposição de carências afetivas, bem como as distorções e os valores materialistas tão presentes em nossa época.
O texto de Erlon José Paschoal prima por ser absolutamente coerente com a realidade: Ivo, o jornalista aposentado de ideias progressistas, esbarra a todo momento na estreiteza e na brutalidade de Fábio, o genro de extrema-direita que exala ódio aos pobres, preconceitos de gênero e um apego irrestrito ao dinheiro. Esse contraste, quase didático, entre a lucidez do protagonista e a postura retrógrada de seu antagonista, faz emergir a pergunta inevitável: como viver em harmonia quando se está em extremos ideológicos tão marcantes? A peça não oferece soluções fáceis, mas, ao trazer a desavença para dentro de casa, obriga o público-leitor a enxergar que esses conflitos, tão presentes nos noticiários, podem eclodir em nosso círculo mais íntimo.
Nesse caldeirão fervente de tensões familiares, o espectador (ou leitor.) se depara com relacionamentos tóxicos e contradições que beiram o absurdo, mas que são assustadoramente plausíveis. Mãe e filha se amam e se repelem, vivem um misto de dependência e ressentimento. Ivo e Ruth, embora morem juntos há anos, não encontram um ponto de equilíbrio: o companheirismo que deveria unir o casal 7 se dissolve em egoísmo, frustração e comodismo. Já Melanie, ao lado de Fábio, revela como uma relação dominada pelo machismo e pela imposição da força física pode facilmente desembocar em violência doméstica – tragédia comum a milhares de mulheres que, por vergonha ou medo, silenciam diante das agressões. É justamente esse silêncio que a peça expõe ao mostrá-lo sendo abafado pela hipocrisia dos “cidadãos de bem”, dispostos a encobrir as aparências para preservar uma fachada de perfeição
Gilberto Gouma
Escritor, compositor, pesquisador, professor do
Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ).
Na loja virtual da Cândida você encontra livros dos mais variados gêneros e de autores novos e consagrados. Para retirar pessoalmente: Rua João Toscano de Brito, 120A - Nazareth - Vitoria - ES (próximo ao IFES de Jucutuquara)